quinta-feira, 23 de maio de 2019

Tecnologia e o risco do vazio.


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Dentre as muitas doenças psiquiátricas diagnosticadas ultimamente, acrescenta-se mais uma ainda quase desconhecida: em inglês, FOMO: Fear Of Missing Out”, literalmente “medo de estar perdendo algo”. 

Do que trata esta doença? 
Trata-se da compulsividade em se alimentar de informações e notícias todo o tempo, da dependência de likes, curtidas, e notícias, relevantes ou não, que são veiculadas a todo tempo nas mídias sociais como Facebook, twitter ou Instagram.  

Recentemente comecei a limpar meu Facebook com quase 2000 amigos, embora, eu mesmo, muito pouco acesse este aplicativo. O que descobri? Que a maioria das pessoas que publicavam fotos e comentários eu sequer conseguia me lembrar delas, ou precisava fazer um enorme esforço para um mínimo de associação necessária. Então, me perguntei: por que eu deveria saber alguma coisa sobre pessoas, se sequer sei quem são? A partir de então, decidi apertar a opção: “deixar de seguir as publicações desta pessoa”, e assim pude valorizar mais aquelas que realmente conheço e com as quais possui alguma conexão emocional. Num clique, elas desapareciam. Pronto!

Pesquisadores do comportamento humano estão percebendo que o sentimento de aceleração temporal encontra-se presente naqueles que ficam mais tempo conectados ao mundo virtual e digital. O “medo de estar perdendo algo”, aumenta a ansiedade e está ligado à depressão.

Pesquisas recentes do Ibope demonstram que 50% dos internautas afirmam não conseguiriam ficar longe dos seus eletrônicos. Alguns adolescentes afirmam que não conseguiriam viver sem celular e que preferiam morrer a ficar sem conexão, e algumas crianças tem rejeitado o convite de seus pais para visitar os avós ou passarem um final de semana na chácara ou fazenda porque lá não possui internet. 

Três dicas para vencer este perigo moderno: 

Primeiro, não fique todo o tempo olhando seu celular. Coloque-o intencionalmente de lado, por quatro horas, e não o atenda. Mesmo que você seja tentado a fazê-lo. Você verá que 99% das cem mensagens que você receberá, neste espaço de tempo, na maioria das vezes, não tem caráter urgente nem valor permanente. Você não perdeu nada importante!

Segundo, viaje para uma fazenda e fique incomunicável. Talvez você sofra inicialmente com isto, mas tente se desgrudar do aparelho. Pode ser uma experiência interessante e transformadora. Dá par viver sem internet, pelo menos um tempo...

Terceiro, Não se assente à mesa para jantar com amigos ou parentes, em casa ou no restaurante, tendo o celular do lado. Não olhe o seu aparelho, deixe-o dentro da bolsa. Isto aumentará consideravelmente a qualidade da conversa. Pode ser que você já não saiba mais fazer isto, mas você reaprenderá. Se você não consegue fazer isto, ou se é compulsivamente levado à tentação de olhar, provavelmente você está entrando no vazio e ansiedade característicos do “FOMO”.

Rev Samuel Vieira.

sexta-feira, 3 de maio de 2019

Caim devia ter matado Abel! Gn 4,1-16

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Análise de Gn 4,1-16 na perspectiva da violência nas origens


Resumo


O estudo que apresentamos quer ser uma análise retórica de Gn 4,1-16 na perspectiva da violência nas origens, bem como do valor simbólico que evocam os nomes de Caim e Abel. É importante analisá-los como agricultor e pastor, mas também como protótipos do agir humano luta pela sobrevivência.





Introdução


Além de representarem as profissões de Agricultor, pastor e ferreiro, Caim e Abel são todos e qualquer ser humano na difícil tarefa de procurar um relacionamento que não seja o do interesse, da inveja e do ciúme. Enfim, que não seja aquele que produza violência. E violência gera violência. Essa máxima conhecida de todos. Não basta revidar um ataque terrorista com outro ataque. Com certeza, a resposta será imediata. Em nossos dias, cresce cada vez mais a violência em seus mais variados modos: corporal, moral, econômica, social, política, religiosa.


A violência hoje se chama droga, ataque terrorista, corrupção política, favela, etc. A classe média brasileira nunca gastou tanto em sistema de segurança, como se isto fosse a solução para o problema da violência. Enquanto não houver justiça social a famosa frase de Plauto continuará a imperar: “Homo homini lupus” (O Homem é o lobo do homem). Infelizmente, o sonho de uma sociedade nova, de um ser humano novo, parece cada vez mais distante. O que não nos impede e perguntar pela origem da violência e buscar na Bíblia textos iluminadores do tema. E será esse o fio condutor de nossa análise de Caim e Abel, em Gn 4, 1-16 (Nota 1)


1 - Qual é a origem da violência?

A origem da violência está em cada um de nós e na relação que mantemos com o sagrado. O uso arbitrário do poder origina violência, que, por sua vez, gera injustiça, insegurança e a afastamento de Deus.

O antropólogo francês, René Gerard, famoso pelo seu livro: A violência e o Sagrado, publicado pela primeira vez em 1972, afirma que (Nota 2) a violência está na base da sociedade e da cultura, sob a forma dissimulada do bode expiatório. Cada um deseja o que o outro deseja, o que desencadeia uma rivalidade constante e ameaçadora, que se identifica com o sagrado, potência sobrenatural opressora, externa ao ser humano, verso o qual a humanidade tem sempre um sentimento de atração e repulsa ao mesmo tempo.

Por isso, o bode expiatório, sacrificado em um ritual, serve para apaziguar e controlar a violência. Sacrifica-se um e todos ficam contentes. A culpa fica assim atribuída ao bode. E a violência se apazigua momentaneamente. George Busch afirmou recentemente que o seu povo não vai dormir em paz enquanto não encontrar e destruir os culpados do atentado aos USA. Aqui estamos diante de um bode expiatório ao inverso. Desse modo, a violência nunca vai chagar ao fim.


2 - A violência na Bíblia


As comunidades que escreveram os textos Bíblicos nos legaram duas narrações sobre a criação (Gn 1, 1-2,41a e Gn 2, 4b-24) e dois relatos sobre a violência nas origens (Gn 3, 1-24 e Gn 4, 1-16). Essa oposição põe em evidência o binômio bem e mal presente no início da humanidade. Tudo isto, é claro, na perspectiva de reflexão teológica sobre a vida e o proceder de quem produziu esses textos. Adão, Eva, Caim e Abel nunca existiram como indivíduos.

O primeiro texto sobre a violência (Gn 3,1-24) deixa claro que essa consiste em abdicar a paternidade/maternidade divina. O ser humano parece ter chegado ao cúmulo de não mais se reconhecer como filho de Deus.

O segundo texto sobre a violência não é a conseqüência do “pecado original” dos pais, como quis a interpretação tradicional desse texto, mas o atestado de óbito da humanidade que se autodestrói. Um irmão mata o seu próprio irmão! A paternidade/maternidade divina está violentada. Analisemos exegeticamente essa passagem. (Nota 3)


3 – O texto de Gn 4,1-16 e sua estrutura literária


Vamos aplicar ao texto de Gn 4, 1-16 o método exegético de interpretação de um texto bíblico chamado de análise retórica. O procedimento consiste, primeiramente, em delimitar estrutura literária do texto em questão, na sua relação como os textos anteriores e no interno dele mesmo. De posse dessa delimitação é inicia-se a análise exegético-teológica.

O texto de Gn 4,1-16 pode ser delimitado por termos iniciais ou finais, isto é, substantivos ou frases que contornam o texto distinguindo-o do texto anterior e posterior. Esses termos são também chamados de “motivos literários” que possibilitam a identificação de uma passagem ou perícope bíblica.

Os termos iniciais são:

4, 1: “O homem conheceu Eva”...


4, 17: “Caim conheceu sua mulher”...

Os termos finais são:


3, 24: “Ele baniu o homem e o colocou diante do jardim do Éden”...


4, 16: “Caim se afastou da presença do Senhor e habitou na terra de Nod, a leste de Éden”...

Além dos termos acima apresentados, encontramos expressões no início e fim de Gn 4, 1-16 que explicando o sentido de um nome o fazendo contraste.


A explicação de nome aparece em:

4, 1: aparece o nome “Caim”, em hebraico, Qaîn, o qual se relaciona com o “adquiri”, em hebraico, qanîtî, que vem logo a seguir.


4, 16: aparece o nome “Nod”, em hebraico, nôd, que por sua vez, se liga à ordem dada a Caim por Deus, no versículo 14: “ser um errante”, em hebraico, nad. Morar na “terra de Nod” é já cumprir a sina de ser um errante.


O contraste entre expressões aparece em:

4, 1: Eva expressa a sua alegria ao conceber Caim dizendo: “Adquiri um homem com a ajuda do Senhor”.


4, 16: O fim da história de Caim se resume em: “E Caim se afastou da presença do Senhor”.


Os motivos de conteúdo são também evidentes em Gn 4,1-16. Aparecem três temas distintos e, ao mesmo tempo, relacionados em uma seqüência teológica lógica. Vejamo-los:



I – 4, 1-5a: A vida de dois irmãos diferentes


II – 4, 5b-7: A tentação de Caim


III - 4, 8-16: O fratricídio e suas conseqüências



O procedimento de análise de Gn 4,1-17 seguirá as partes acima apresentadas.


4. Gn 4, 1-5a: A vida de dois irmãos diferentes


Essa primeira parte da passagem em questão delineia o perfil de Caim e Abel, ora como objetos, ora como sujeitos de ações. Desse modo, podemos também dividir Gn 4, 1-5a em três partes, a saber:


4, 1- 2a : Caim e Abel como objetos do gerar dos pais.


4, 2b - 4a: Caim e Abel como sujeitos

Abel: - pastorear de ovelhas;

- oferecer primícias e gorduras do seu rebanho ao Senhor.

Caim: - cultivar a terra

- oferecer produtos do solo em oferenda ao Senhor.

4, 4b-5a: Caim e Abel são objetos da eleição divina. O Senhor se agrada das ofertas de Abel e rejeitas as de Caim.

E como não bastasse, o nascimento dos irmãos são marcados por diferenças fundamentais.

a) O nascimento de Caim

O texto diz: “O homem conheceu Eva, sua mulher. Ela engravidou, gerou Caim e disse: Adquiri um homem, com a ajuda do Senhor” (v1).


No hebraico, o substantivo qaîn significa ferreiro. Ele deriva da raiz verbal que, por sua vez significa comprar, obter, fundar, criar, procriar. Daí a afirmação “adquiri um homem” e não “um filho”. Observamos nitidamente uma ambigüidade no texto: Eva procriou um “homem-filho” e obteve um “homem-marido”. O texto parece a ressaltar que, embora Gn 2,23 tivesse dito que a “mulher foi levada ao homem”, o homem (Caim) provém da mulher e não contrário (4, 1). Em todo caso, o texto valoriza o nascimento de Caim-homem. Isto significa que Caim seria um herói ou um semideus? Não sabemos.
Eva, ao louvar o nascimento de Caim, expressa toda a sua alegria e gratidão pelo ocorrido. Nisso está a esperança promissora do filho ora gerado. No entanto, esse não será o futuro de Caim. Ele não será abençoado. O insucesso será a sua sina. A promessa de esperança não se realiza. Deus age em favor de Eva e contra Caim.


b) O nascimento de Abel


O texto diz: “Ela gerou ainda o irmão dele, Abel” (v.2a).


No hebraico hêbêl significa, vento, sopro, hálito, algo efêmero, vazio, insignificante, fugaz, ilusão, luto, lamento, choro, desengano. Abel é o representante da tragédia humana, na sua fugacidade. O livro do Eclesiastes, quando diz que “tudo é vaidade das vaidades” (Ecl 1,1) usa o substantivo habel. Tudo é fumaça, tudo é passageiro. Abel é símbolo de todas as frustrações do ser humano: luto, dor, fraqueza.


Por isso, o nome dado por Eva ao seu segundo filho quer mostrar a fragilidade do ser humano, já no início da criação, não obstante o triunfo magistral do seu antecessor, Caim. Abel representa também todo Adão, ou seja, aquele que veio do pó da terra. Assim, Eva dá à luz a Abel, aquele que “nasceu somente para morrer”. Não há o que fazer. A violência gera sempre um Abel, vários abéis. Sem violência todo e qualquer Abel deixará de existir. E é isso que o conto/mito de Abel e Caim nos mostrar.


c) Os dois irmãos


O texto afirma antes do anuncio do nome Abel que ele é irmão de Caim. O substantivo na passagem em questão nada menos que sete vezes (vv. 2a; 8a; 8b; 9a; 9b; 10; 11), o que nos indica que este é um tema essencial. A narração é, de fato, sobre dois irmãos que se tornam rivais. Caim é o primogênito.

No mundo semita, ser primogênito significa poder e privilégio na herança e bênção. E nisso também está origem da violência nas origens. A primogenitura de Caim lhe daria a certeza do sucesso, o que vem reforçado pelo nascimento do irmão. A desilusão é a matriz da violência posterior. Caim será sempre o protótipo de todo ser humano que luta pelos seus direitos roubados. Mesmo que isso gere violência.


d) A diferença cultural


O texto diz: “Abel apascentava as ovelhas, Caim cultivava o solo” (v.2b).

A diferença cultural aparece logo no início do relato: Abel é o pastor nômade de ovelhas e Caim, o agricultor sedentário. Caim, matando o nômade, recebe como castigo a aplicação da lei do talião, deve tornar-se “nômade” errante. A comunidade que produziu esse texto, não estaria querendo explicar o conflito vivido por ela? O povo da roça estava sendo expulso para as cidades. As cidades eram símbolos de idolatria. No deserto, a vida não era assim. E nessa relação estava a violência. Bastava remetê-la às origens. E foi o que a comunidade desse texto fez.

Caim seguiu a profissão do pai Adão, ou melhor a sua condenação: a de cultivara terra. Por outro lado, a história da salvação nos mostra que os pastores Abraão, Isaac e Jacó foram os escolhidos.


e) A diferença no culto

O texto diz: “No fim da estação, Caim trouxe ao Senhor uma oferenda de frutos da terra; também Abel trouxe primícias dos seus animais e a gordura deles” (v.3-4a).

A referência “fim da estação” denota o tempo esperado e necessário para que o trabalho dos dois irmãos dê os primeiros frutos, seja oriundo da terra, seja dos animais. E oferta parece normal para a cultura que eles representam no relato. Uma oferta não tem privilégio sobre a outra. A diferença aqui se baseia, de fato, no produto oferecido. Deus não teria como se agradar de uma, em detrimento da outra. Mas não é isso que ocorre. É o que veremos a seguir.

f) A diferença no sucesso

O texto diz: “O Senhor voltou seu olhar para Abel e sua oferta , mas de Caim e da oferenda que trouxera desviou o olhar” (v. 4b-5a).
Desviar o olhar significa dizer que Deus não se agradou de Caim e nem de sua oferta. No Primeiro Testamento, “voltar o olhar” (sh‘h) aparece 10 vezes e não está ligado ao fato de aceitar ou não uma oferta. Não estaria esse verbo, no texto em questão, colocado de forma estratégica a fazer o leitor perceber o que vem dito a seguir: Caim passou a andar com o rosto abatido, olhando para a terra, isto é, caído. E nisso está uma diferença evidente entre os dois irmãos. A língua hebraica tem um recurso literário chamado quiasmo que nos ajuda a entender esse contraste querido na narração. Uma idéia é colocada em relação à outra na forma de cruz. No texto ficou assim
a: O Senhor voltou seu olhar b: para Abel e sua oferta,

b: mas de Caim e da oferenda a’: desviou o olhar.

Estamos diante de um texto enigmático. Por que Deus age de maneira diferente com Abel e em relação a Caim? Quais são os motivos para aceitar uma oferta e rejeitar a outra? Não estaria Deus mesmo originando a violência nas origens? Qual era o objetivo da comunidade que produziu essa história de dois irmãos rivais? E por que eles se tornaram rivais? Essas perguntas não são fáceis de serem respondidas. O fato de o conto imaginar dois irmãos diferentes, equivale colocar a questão da desigualdade e constatar o surgir da violência e inveja já nas origens.

O que também não de tudo verdade dizer que entre eles só existem diversidades. O ser irmão, a igualdade entre eles faz com que um grite: “eu estou privado daquilo que o outro tem”. Esta constatação é insuportável e daí nasce a violência. E onde, então, estaria a culpa? Em Abel? Em Deus mesmo? Em Caim? A tradição encontrou muitas justificativas para colocar a culpa em Caim. Ele teria nascido da relação entre Eva e a serpente, conta um midraxe rabínico. Caim era um avarento, diz o historiador Flávio Josefo. A oferta de Caim veio da terra maldita anteriormente por Deus e, por isso, não poderia ser aceita.

Colocar a culpa em Deus pode ser também possível. A literatura apocalíptica mostra que o bem e o mal têm a origem em Deus. Ele perdoa e castiga. Não foi assim que aconteceu com a criação? Adão e Eva, isto é, os seres humanos, foram criados para o bem, mas acabaram fazendo do mal. Bem e mal estão dentro de cada um de nós. E nós somos imagem e semelhança de Deus.

Nessa história toda, sempre tem um tentador e um que é tentado. Imaginemos que esse seja Caim.
5 - Gn 4, 5b-7: A tentação de Caim

O texto pode ser dividido em duas partes: v. 5b e vv.6-7.

O texto da primeira parte diz: “Caim irritou-se muito com isto, e seu semblante ficou abatido”.


Caim está irritado, se sente desfraldado, sua situação é injusta e insuportável. Com isso, o seu semblante só podia ficar abatido. Tristeza misturada com ira o dominou. E que não fica assim, ao sentir-se vilipendiado, ainda mais por Deus. Nesse sentido, é normal Caim sentir-se movido a fazer o mal, isto é, ser tentado a agir de modo errado. Essa tentação está dentro de cada um de nós. Por pior que haja alguém, ele quer sempre eliminar aquilo que não o impede de ser.

O batido não nasce bandido. Ele é feito bandido. O terrorista é gerado por sistemas iníquos. Afirmou o líder do movimento terrorista Taliban: “Saibam Israel e seu comparsa EUA que nós somos fruto do mal que ele nos faz”. E não por menos, esse exército de terroristas suicidas aprende as lições de casa desfilando sobre as bandeiras desses dois países. Violência gera violência.

O texto da segunda parte diz: “O Senhor disse a Caim: Por que te irritas? E por que o teu rosto está abatido? Não é assim: se fizeres o bem, o levantarás, e se não fizeres o bem, o pecado jaz à tua porta como um animal acuado que te deseja? Mas tu, domina-o”.

O texto mostra um diálogo imaginário entre Deus e Caim, o qual é, na verdade, a voz interior que está dentro de cada um de nós. É a comunidade do texto procurando resposta para essa situação angustiante que nos assola. A pergunta desconcertante ou taxativa de Deus coloca Caim entre dois caminhos do bem

a) “Se tu fazes o bem, Deus levantará a sua cabeça, agirá em seu favor”. Caim deve agir com justiça, isto é, fazer o bem, e esperar pela aça, também justa, de Deus. E Caim pode agir assim. O fato de Deus não ter aceitado a oferta de Caim, não significa necessariamente que Ele o rejeitou. Parece que a comunidade do texto esteja querendo justificar em Deus um fato que pode ocorrer com muitos de nós: tudo vai mal, nada dá certo. Mas, não é essa a nossa condição própria de humanos? Não é resistência acreditar que tudo pode mudar? Deus intervirá em nosso favor. Essa é certeza que precisamos acreditar. Basta fazer o bem, o resto fica por conta de Deus.

b) “Se tu fazes o bem, podes levantar a cabeça. O fazer o bem provoca, automaticamente, alegria no rosto e cabeça levantada”. A boa ação de Caim fará dele um ser humano bom e alegre. A tristeza no seu rosto é o sinal evidente que ele está agindo mal.

O agir mal de alguém se transforma em um animal agachado à porta de nossas casas esperando para dar o bote. O animal acuado é o símbolo do perigo, da tentação que deve ser dominada. Ele mora dentro de cada um de nós. E está sempre pronto para atacar. Assim também ocorreu com a serpente e a Eva. Ou a Eva/serpente/Adão? Basta que eu deseje o que outro tem ou me sinta lesado nos meus direitos, para que o animal entre em ação.

E por mais violento que seja o animal, o mal será maior. Após o famoso ataque terrorista aos USA, representante mor do neoliberalismo, esse “leão” ficou enfurecido. E quem não tem medo de um leão enfurecido? Não é ele “o rei da selva”? Por outro lado, a decisão de agir em favor do bem ou do mal cabe a cada um de nós. Nisso está o sagrado mistério da liberdade. Nisso está a morte e a vida de outrem e de mim mesmo.


6 – Gn 4, 8-16: O fratricídio e suas conseqüências




A terceira parte do nosso conto pode ser dividido em três partes: v. 8; 9-15a e 15b-16. O diálogo entre Deus e Caim está no centro. Tendo as ações de Caim no início e no fim do relato.



A primeira parte diz respeito às ações de Caim. O texto afirma: “Caim falou a seu irmão Abel: ‘Saiamos’ e, quando foram ao campo, Caim atacou seu irmão Abel e o matou”.



O conto/mito narra solenemente o “primeiro” assassinato realizado entre os seres humanos. E como ele foi violento. Chegou a ser um fratricídio, um irmão matou o seu próprio irmão. A bem da verdade, esse não foi o primeiro assassinato, ele foi, sim, o modo encontrado para explicar os tantos assassinatos, a violência instaurada e institucionalizada na época em que o texto foi escrito. A resistência à violência implicava também encontrar uma explicação originária para ela.


O violento “Caim” escolhe o campo, lugar solitário e sem testemunhas, para realizar a violência. A injustiça é feita às escondidas e o malvado procura esconder as pegadas de sua violência.


Imagine, trazendo para os nossos, a atualidade desse texto: os terroristas que atacaram as Torres de Nova York e o Pentágono planejaram longos anos a fio o atentado. Estudaram nas escolas do inimigo. Escolheram vôos que saiam simultaneamente. Um terrorista acreditou que o outro não iria traí-lo. E CIA nenhuma, por mais dinheiro que usasse para descobrir planos terroristas, não foi capaz de descobrir tamanha ação.


A segunda parte (vv. 9-15a) diz respeito ao diálogo ente e Caim. O texto relata: “O Senhor disse a Caim: Onde está o teu irmão Abel? Não sei, respondeu ele. Sou eu o guarda de meu irmão? 10 Que fizeste?Ele retrucou. A voz do sangue• do teu irmão clama do solo a mim. 11 És agora amaldiçoado, banido do solo que abriu a boca para recolher da tua mão o sangue do teu irmão.12 Quando cultivares o solo, ele não te dará mais a sua força• . Serás errante e vagabundo sobre a terra. 13 Caim disse ao Senhor: Meu crime é pesado demais para carregar. 14 Se hoje me expulsas da extensão deste solo, serei expulso da tua face, serei errante e vagabundo sobre a terra, e todo aquele que me encontrar me matará. 15 O Senhor lhe disse: Pois bem• ! Se matarem Caim• , ele será vingado sete vezes.”



O relato, nesses versículos, é marcado pelo diálogo entre Deus e o Caim. Deus fala no início, meio e fim. O esquema assim se revela:



Deus (v.9a) acusa Caim



Caim (9b) responde com uma mentira

Deus (10-12) faz uma réplica com uma pergunta e dá a sentença

Caim (13-14) retoma a palavra


Deus (15a) sentencia quem matar Caim

Deus acusa Caim (v. 9a) perguntado pelo paradeiro do irmão: “Onde está o teu irmão Abel?” A acusação está em forma de interrogação. O mesmo ocorre com Adão e Eva. Esse procedimento tem como finalidade facilitar a confissão do culpa

Caim responde com uma mentira (v. 9b) afirmando: “Não sei. Acaso sou eu guarda de meu irmão”. A pergunta retórica quer quase dizer: eu sou o culpado, devia cuidar de Abel (o débil), mas não o fiz. Nisso está a ironia de Caim. Quem cuida de ovelhas (Abel) que também se cuide. Caim não foi capaz de reconhecer a culpa.

Deus faz uma réplica com uma pergunta e dá a sentença (vv.10-12) condenatória: o culpado é maldito e expulso da terra fértil que abriu a boca para acolher o sangue do irmão. O sangue do crime está sobre a terra. Quer evidência maior da injustiça cometida. Contra a prova de um crime, não se pode nega-lo. Dt 21, 1-9 fala de um rito que deveria realizado para livrar-se o sangue de alguém fosse assassinado no campo. Isso impediria a reivindicação da justiça por outrem.

No nosso texto, é o próprio sangue derramado que é utilizado para anunciar a sanção, a sentença ao culpado Caim. E a sentença vem em forma de maldição. Em Gn 3, 14-17 a maldição é lançada sobre a serpente e a terra. Aqui, a maldição é sobre o ser humano, na pessoa imaginária chamada de Caim. A semente de violência lançada pelo lavrador produz maldição sobre ele mesmo e a terra que lhe concede vida. Matar Abel é o mesmo que matar a terra que, assim como Abel, é um sopro de vida. Caim (ser humano) perde o irmão e os frutos da terra. Caim (ser humano) é um exilado em sua própria terra.
Ele, como os pais, será um errante sobre a terra. Caim não é condenado à morte, como previa a Lei do Talião (olho por olho, dente por dente). Deus age como Pai e não como juiz. A sua ação de castigar tem a função de salvar o culpado, através do castigo. O exílio devia suscitar em Caim o desejo eterno de reparar o erro cometido. Cada um que lesse ou ouvisse contar essa história deveria se sentir qual outro Caim exilado, mas cheio de esperança de encontrar um tempo de paz. Da mesma forma, o a comunidade do texto quer mostrar que lei deve recuperar o culpado e não simplesmente condená-lo.

Caim retoma a palavra (vv.13-14) afirmando que a sua culpa era grande demais. A certeza do revide lhe parecia claro. Quem por primeiro lhe encontrasse o mataria. O texto hebraico do v. 13 pode ser traduzido nos seguintes modos:


a) Minha culpa é grande demais para suportá-la;


b) Minha culpa é grande demais para que Deus a perdoe;


c) Meu castigo é grande demais para poder suportá-lo;


d) Minha culpa é grande demais para poder suportá-la, mas tu podes perdoá-la.


Das traduções acima, o sujeito do verbo suportar ou perdoar pode ser Caim ou Deus. (Nota 4 ) Se o sujeito for Caim: ele (Caim) se sente incapaz de assumir a própria culpa e suas conseqüências e, portanto, pede clemência a Deus. Se o sujeito for Deus: ele (Deus), segundo a opinião de Caim, não poderá perdoar o seu crime, pois esse é grave demais. A conseqüência do “não perdão” é o desespero total de Caim. O ser fugitivo é conseqüência de um pecado irreparável.

Melhor seria considerar o sujeito de modo indeterminado e traduzir o v. 13: “Minha culpa é por demais grave para ser suportada, seja por mim, seja por Deus, seja para quem me encontre”.


Conseqüência dessa tradução:

1) A gravidade da culpa expõe Caim à vingança;

2) Caim afirma que o pecado exige o castigo;

3) O castigo produz violência. O violento é obrigado a escapar sempre, pois será sempre um ameaçado por todos. Quem assassina será assassinado.

4) Nem mesmo a pena suavizada, no caso o exílio, impede a violência;

5) A vontade de Deus em salvar o violento deixa de ser eficaz;

6) O fato de o culpado ser abandonado como vagabundo e indefeso, ele é entregue nas mãos de um potencial assassino, um vingador de sangue.

Deus sentencia quem matar Caim (15a) afirmando que “Quem matar Caim será vingado sete vezes”. Ser vingado sete vezes significa simbolicamente a totalidade. Quem matar Caim, isto é, quem responder a violência com violência ainda maior, será punido sem medida.

A terceira parte do relato (vv.15b-16) diz respeito às ações de Deus e Caim. Deus, com um gesto enigmático, coloca um sinal sobre Caim e esse passa a ser um medroso, um ameaçado. O culpado nunca consegue se ver livre da culpa. E ele deve assumir o seu papel. A violência instaura o terror. E por mais paradoxal que seja, o medo de Caim, simbolizado pelo sinal, fará com que a vida permaneça sobre a terra.

A Caim, ao ser humano, só resta fugir da presença de Deus e ir morar na terra de Nod, onde vivem os errantes, o sem pátria. Até que um dia o Éden volte a ser uma realidade na sua vida. A esperança permanece. A violência deixará de existir. É preciso sonhar sempre. Só quando houver justiça social é que não mais haverá violência, ataques terroristas.

7 - Caim fez bem ao matar Abel!

O estudo que fizemos até o momento deixou claro que a interpretação das personagens Caim e Abel foi marcadamente acentuada pelo papel que eles exerceram como Agricultor e pastor. No entanto, se faz necessário interpretá-los também como ferreiro e vento.

a) Caim: ferreiro, imagem da violência e da morte

Caim significa ferreiro, profissão que surgiu na lá pelo ano 1200 a.E.C. Como o povo via o ferreiro na antiguidade? “O ferreiro gozava duma fama fora do comum em toda a antiguidade. Boa e má. Era respeitado, venerado e também temido e odiado.

Tudo isso devido à sua profissão e à sua ligação com o céu e o inferno. Antes de mais nada, ele era um artesão e um técnico que conhecia o segredo da transformação do metais, bronze e ferro. Fabricava instrumentos de utilidade doméstica, religiosa e militar: lanças, espadas, machados, facas, setas, martelos, ídolos, amuletos, imagens dos gênios ancestrais.

Tinha fama de mago e feiticeiro. Fora colaborador dos deuses na criação do mundo e arquiteto dos seres. Chamavam-no “senhor do fogo”, porque transformava matéria, endurecia o metal, criava formas novas em sua forja. Fazia até instrumentos para os deuses: o rio era obra sua. O forno químico do mundo foi preparado pelo ferreiro. Desse forno saiu o universo com tudo o que existe.
Seus títulos de glória causavam inveja até nos deuses: fundador de cidades, herói protetor da aldeia, primeiro homem das classes nobres. Ensinou como abater os animais com instrumentos de ferro. Trouxe do céu o fogo e as sementes. Era também médico que curava as doenças e preservava do mau olhado.
Chamavam-no de mágico satânico, benfazejo e maléfico, pois usava de sua técnica a favor e contra homens e deuses. Ninguém mais categorizado para ser chefe das aldeias, representantes das comunidades, ministros nas cortes, construtor de cidades.

Era considerado cantor, profeta e adivinho. Enquanto trabalhava, entoa hinos, profere palavras mágicas e cria obras admiráveis. É poeta, dançarino, taumaturgo.

Devido a essas qualidades todas, não era um homem comum. Vivia retirado da sociedade, nas cavernas, no centro da terra, na fornalha dos vulcões. Vulcano é o nome de um deles. O próprio nome já indica sua profissão e moradia.

Carregava no corpo sinais típicos e visíveis. O ferreiro é defeituoso, coxo, estropiado, caolho, maneta, anão ou de corpo gigantesco. Tem às vezes forma de demônio. As marcas que leva no corpo são castigos dos deuses, por causa de seus poderes mágicos. Os deuses sentiam-se enciumados pela usurpação dos poderes divinos e pelo roubo dos segredos do céu.

Apesar disso e por causa disso, seu status é fora do comum. Devido à sua ligação com mundo além, céu e inferno, ele goza de imenso prestígio. É chefe, é nobre, é semideus e até deus. Os deuses da tempestade são ferreiros que golpeiam com seus martelos, provocando o ruído dos trovões.
Mas todo mundo sente pavor de tanto poder. Em razão de tantos títulos, ele é também odiado, desprezado, marginalizado, maldito, intocável, impuro, paria. Não pode casar-se com moças da tribo, pois traz azar para a comunidade”(Nota 5)


b) Abel: vento, imagem das frustrações humanas

Retomando o que dissemos nas páginas anteriores, Abel significa vento, sopro, hálito, respiro, vapor, névoa, fumaça, vão, fútil, inútil, vaidade, fugaz, coisa caduca, que flui rapidamente, que desaparece, frustração, ilusão, mentira, aborto, desengano, luto, lamento, choro. Vários textos bíblicos testemunham o uso de hêbel com os significados acima mencionados, tais como: Is 49,4; Sl 31, 7; Ecl 4, 4.8.16; 5, 6; 6,2.11.

c) Nas duas imagens a linguagem dos símbolos

Diante dessas informações sobre o significado dos nomes Caim e Abel, resta-nos perguntar pelo o objetivo da comunidade que escreveu a história desses dois personagens? Em que ela estava pensando? Valeu a pena ter matado Abel? Qual Abel foi assassinado?

O ferreiro, como vimos acima, catalisava na sua profissão o bem e o mal, o ódio e a violência. O mito bíblico enfocou mais o lado moral e ético que o nome Caim evoca: vingança, ciúme, crime. Também preservou o seu lado de construtor de cidade. Gn 4,17 diz: “Caim tornou-se construtor de cidade e deu à luz”... Se considerarmos essa informação importante do texto, bem como a profissão de ferreiro, podemos interpretar o drama de Abel e Caim como briga entre a cidade e o campo. As cidades, naquela começavam a despontar no cenário e a conseqüência disso era exploração dos camponeses. Mas, por ora, deixemos de lado essa rica é válida leitura do mito/conto de Caim e Abel.

O ferreiro, com o golpe do martelo na bigorna, fabrica vários tipos de instrumentos. Caim, o ferreiro, golpeia a cabeça do seu irmão Abel, o pobre e insignificante, e o mata. (Nota 6 ) Caim precisa sempre de um Abel para matar, e, com o sangue dos Abeis, manter-se no poder. O sangue derramado perpetua a violência entre os povos.

O pobre, sempre indefeso, vive às margens da sociedade, esperando a morte chegar. Ele, qual outro Abel, é luto, dor , sofrimento e desesperança. E se fosse esse o Abel assassinado por Caim, ele merece o castigo. Mas, o Abel das frustrações e desilusões do humano mal sucedido em seus empreendimentos, Caim fez bem em ter matado. E não merece castigo. Assim, um Abel é fruto de um Caim. E Caim é conseqüência de um Abel.

8 – O que podemos concluir sobre o estudo de Abel e Caim?

1. O conto sobre Abel e Caim explica teologicamente como o mal estava já nas origens da humanidade. O que estamos vivendo tem suas origens no mundo antigo. O mal poderá continuar no meio de nós, se nós, por livre decisão continuarmos a perpetuá-lo. E nossa história continuará indelevelmente condicionada à nossa condição de pecador.

2. Gn 4,1-16 ilumina a temática da justiça quando propõe a saída da condição de violência originária como superação da injustiça.

3. O animal acuado é um símbolo bestial da violência que mora dentro de cada um de nós. Caim foi dominado por esse animal. Ele entrou em ação. E Caim ficou submetido ao impulso bestial da violência. Caim ficou atrelado ao desejo de vida plena que inclui a morte do próprio irmão e, até mesmo, de Deus. Qual é a solução para essa para essa atitude não querida por Deus? O próprio livro do Gênesis responde:

a) Quem matar Caim será vingado 7 vezes.

b) E Lamec será vingado 77 vezes (70x7) o que significa um freio total à autodestruição (Gn 4, 24).

c) O dilúvio (Gn 6, 5-9,17) será a recriação da humanidade. Após o dilúvio, o animal, menos o seu sangue, poderá ser comido pelo ser humano. Sangue é vida. E a vida do outro não poderá jamais ser comida.

d) Após o dilúvio, o ser humano não poderá derramar o sangue de seu irmão (Gn 9,6), senão ele mesmo morrerá. Isto é também um freio à violência. A lei do Talião é o remédio último para frear a violência.

e) Ser imagem e semelhança de Deus (Gn 1, 26) significa dominar o animal que está dentro de cada um de nós. E dominar sem violên

4. O verdadeiro ser humano para Deus é a integração entre os irmãos Abel e Caim, o ser humano segundo o coração de Deus. Deus, rei-pastor (Abel) governa o mundo em harmonia com a terra (Caim) sem usar a força da violência, mas a da Palavra.

Frei Jacir de Freitas Faria, OFM


Artigo publicado na revista Horizontes, do Instituto Santo Tomás de Aquino, Belo Horizonte.


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O PASTOR E A SÍNDROME DE BURNOUT: UMA ABORDAGEM TEOLÓGICA-PASTORAL.


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INTRODUÇÃO
“. . . para que façam isto com alegria e não gemendo” (Hb 13.17).

O ministério pastoral conta com inúmeros desafios, dificuldades e lutas. Nos últimos anos, porém, mais uma calamidade passou a ser comum à cultura pastoral: o burnout. Em seu estudo sobre o assunto, Jetro Ferreira da Silva concluiu que os ministros religiosos e outros profissionais de ajuda enfrentam um risco mais elevado de experimentar essa síndrome devido à natureza do seu trabalho.1 Ou como testifica Christopher Ash, alguém profundamente marcado pela vivência de esgotamento em determinado momento de seu ministério, “burnout é um preço terrível a ser pago pelo zelo cristão. Algumas vezes ele não pode ser evitado. Para alguns, significa que não há outra maneira de viver sacrificialmente para Jesus”.2 Semelhantemente, o pastor Ray Ortlund comentou: o que chamamos de burnout é a experiência de profunda exaustão na qual nossas capacidades usuais de resiliência, de recuperação, de permanecer firmes, confiantes e perseverantes não são mais suficientes. Burnout significa que algo bem profundo em nós entrou em colapso e não conseguimos mais continuar. Nós pastores entendemos o burnout, e não apenas na vida dos outros, mas em nós mesmos.3 A todos os agravantes relacionados a essa condição, se acrescenta o fato de que “muitas congregações estão totalmente inconscientes desse problema ou não compreendem o que significa para o pastor e sua família serem confrontados com o burnout”.4 Dessa forma, este artigo visa a contribuir com a discussão sobre esse assunto, trazendo esclarecimentos e apontando sugestões de tratamento aos pastores que lutam contra essa síndrome. Isso será feito por meio da revisão de alguns estudos que conectam o burnout ao ministério pastoral, bem como a indicação de algumas causas comuns e prescrições terapêuticas à cultura pastoral. Devido à natureza introdutória e descritiva deste artigo, vários tópicos aqui abordados poderão ser, certamente, ampliados e estudados em maior profundidade.


1. PASTORES E A SÍNDROME DO BURNOUT
A síndrome de Burnout tem sido conceituada como um distúrbio psicótico de caráter depressivo, resultante do esgotamento mental e físico, intimamente conectado à atividade profissional de alguém.5 O Dr. Steve Midgley corretamente lembra que “burnout não é um diagnóstico com precisão médica e nem deve ser confundido com o colapso mental, mas trata-se de um recurso cultural para explicar o que ocorre com aqueles que estão ‘vivendo no limite’”.6 Em geral, essas pessoas são caracterizadas pela impossibilidade de operar corretamente por causa da exaustão de energia. O conceito da síndrome do burnout surgiu em meados dos anos 1970, nos Estados Unidos, como explicação para o processo de esgotamento de trabalhadores que culminava no desempenho paupérrimo ou completo desinteresse na atividade profissional. Com o passar do tempo, a síndrome passou a ser identificada como uma resposta ao estresse laboral crônico integrado por diferentes atitudes e sentimentos negativos.7 No Brasil, o diagnóstico é regulamentado pelo Decreto 3.048 (de 1999), no anexo II do Regulamento da Previdência Social, que trata dos Agentes Patogênicos causadores de doenças profissionais, e está incorporado na CID 10 (Classificação Internacional das Doenças) como a “sensação de estar acabado”, Síndrome do Burnout ou Síndrome do Esgotamento Profissional.8 Segundo Pêgo e Pêgo, “o burnout acomete profissionais que mantêm uma relação direta e constante com outras pessoas, como professores, médicos, enfermeiros, psicólogos, assistentes sociais, policiais, bombeiros etc.”.9 O fato de essas pessoas se dedicarem ao cuidado com o próximo, conviverem com situações tensas, lidarem com o sofrimento do outro e assim por diante faz com que, muitas vezes, se tornem vítimas do desgaste. Nesse sentido, o ministério pastoral parece oferecer várias condições para que o burnout seja um perigo contínuo e imediato também para os pastores. Alguns estudiosos descrevem o burnout como um fenômeno de natureza tridimensional caracterizado por sentimentos de exaustão emocional, desapego do trabalho e insatisfação pessoal.10 Deve se observar ainda que esses fatores são favorecidos por profissões que alimentam a despersonalização do trabalhador, a necessidade de contínuas adaptações ao trabalho e a intensa carga emocional exigida pelo mesmo.11 O burnout comumente atinge os profissionais voltados para as atividades de cuidado de outros, especialmente quando esse cuidado implica na oferta de ajuda para casos que envolvem intensas pressões e alterações emocionais.12 Nesse sentido, o pastor que no mesmo dia celebra o nascimento de uma criança e parte para a realização do culto fúnebre de um ente querido da comunidade acaba sofrendo um desgaste incomum a outros profissionais. Também, outros profissionais dificilmente carregam a pressão extra de terem a família “na vitrine”, diante dos olhos da congregação, sendo julgada e continuamente avaliada, como ocorre com o ministro do evangelho. Em sua dissertação de mestrado, a pesquisadora Roseli Margareta K. de Oliveira constata que “no meio pastoral, ou religioso, em geral, há muito desgaste, devido às demandas constantes pessoais e familiares relacionadas à congregação que pastores lideram, havendo uma relação entre exaustão emocional, física e espiritual”.13 Nesse sentido, Alistair Begg lembra ser comum no pastorado o ministro retornar de eventos nos quais ele é usado para ajudar outros, mas não encontrar nenhum recurso para sustentar a si mesmo.14 Outros elementos que agravam essa condição incluem o fato de o pastor conviver com a solidão ministerial, bem como as exigências de que ele possua mente culta, coração inocente, capacidade de receber e absorver críticas e as pressões comuns à posição de liderança. Enfim, todo esse conjunto faz com que o pastor seja um dos candidatos ideais para o estresse, a fadiga e o burnout. Por exemplo, alguém já considerou que em uma programação social da igreja, enquanto todos se divertem e descansam, o pastor está atento a algum membro solitário ou aconselhando quem precisa de ajuda? Todos se divertem; o pastor trabalha! Conquanto algumas estatísticas apontem para o surgimento de um esforço tímido de algumas igrejas no sentido de cuidarem melhor dos seus pastores, ainda permanecem a sobrecarga, o estresse, as dificuldades financeiras e as pressões causadas pelas expectativas exageradas dos membros da congregação em relação ao pastor e sua família.15 Um exemplo a esse respeito pode ser visto no trabalho dos pesquisadores do Francis Schaeffer Institute of Church Leadership Development, o qual revela sinais alarmantes com respeito à saúde dos ministros de denominações evangélicas nos Estados Unidos. Dentre os pastores entrevistados, · 75% relataram estar “extremamente estressados”; · 90% trabalham entre 55 e 75 horas por semana; · 90% se sentem fatigados e exaustos ao final de cada semana; · 70% afirmam não serem suficientemente pagos para realizar seu trabalho; · 40% relataram sérios conflitos e tensões com algum membro da congregação ao menos uma vez por mês.16 Nesse sentido, ainda que esclarecedoras, o leitor deve considerar que as estatísticas, em geral, revelam apenas uma ponta do iceberg. A verdadeira situação da classe pastoral pode ser bem pior do que esses dados indicam. Em sua pesquisa sobre o tema, a Dra. Crystal M. Burnette conclui que, “com base na literatura empírica, publicações populares e testemunhos pessoais, o burnout é uma realidade para muitos pastores”.17 Essa afirmação pode ser constatada observando-se o conjunto de títulos recentemente publicados sobre esse assunto.18 O que essa literatura nem sempre aborda são os impactos do burnout pastoral sobre a família e a vitalidade da congregação. A ênfase dessas obras, em geral, diz respeito ao bem-estar do indivíduo e às recomendações pessoais para prever os sintomas de burnout. São necessários estudos mais específicos sobre causas e prevenções comunitárias no sentido de ajudar os ministros do evangelho a continuarem espiritual, emocional e fisicamente saudáveis no desempenho de seu trabalho. Também, ainda que importantes, informações estatísticas sobre a condição emocional da cultura pastoral, sem o devido processamento, servirão apenas para despertar a atenção da igreja em relação a um perigo iminente. Se não forem analisados corretamente, dados e números não explicarão por si mesmos as causas prováveis e nem estabelecerão as precauções básicas na luta contra o quadro de burnout entre pastores. Por isso, a próxima parte deste artigo se dedica a listar alguns fatores que, se não tratados, acabam culminando na síndrome de burnout no ministério pastoral. Após isso, será apresentada uma lista de sugestões de medidas a serem tomadas para se evitar ou lutar contra esse fenômeno. Como um ensaio sempre intenta uma abordagem representativa, mas limitada, os tópicos relacionados neste artigo podem ser ampliados em estudos posteriores. 2. CAUSAS DE BURNOUT ENTRE PASTORES Por se tratar de uma síndrome que envolve inúmeras variáveis, o diagnóstico do burnout deve considerar a resistência de cada indivíduo para enfrentar pressões, mas também necessita observar que o burnout se instala de maneira lenta, gradual e progressiva no indivíduo. Nesse sentido, Álvarez Gallego e Fernández Ríos apontam três momentos para a manifestação dessa síndrome. O primeiro momento é considerado “estresse laboral”, quando as demandas do trabalho são maiores do que os recursos materiais e humanos para realizá-lo. O que é característico nessa fase é a percepção de uma sobrecarga de trabalho. O segundo período é entendido como “sobre-esforço pessoal”, quando o profissional tenta se adaptar às demandas e produzir uma resposta emocional ao desajuste percebido. Nesse momento, é comum o indivíduo expressar sinais de fadiga, tensão, irritabilidade e ansiedade. Por último, há o “enfrentamento defensivo”, no qual o sujeito produz uma troca de atitudes com o objetivo de se defender das pressões experimentadas. Isso acaba gerando comportamentos de distanciamento emocional, isolamento, cinismo e rigidez.19 O progresso desses sintomas dificulta a precisão do diagnóstico, retardando o tratamento. Além do mais, é comum encontrar muitos casos nos quais a pessoa se nega a acreditar que o caso dela seja, de fato, tão sério. Na literatura sobre o assunto é comum encontrar a descrição de alguns sintomas já estabelecidos para identificar o progresso no esgotamento que resulta na síndrome de burnout. Essa metodologia ajuda o leitor a fazer uma autoanálise para avaliar sua verdadeira condição. No caso de pastores, é triste constatar que nem todos possuem as informações ou a disposição para atentar seriamente a esses sintomas. Isso acaba intensificando um quadro que já é deveras preocupante. Estudiosos costumam olhar para os sintomas do burnout como os meteorologistas analisam as mudanças climáticas ou estabelecem previsões de tufões. Não há, nesse sentido, uma cartilha cronológica a ser obedecida, mas o efeito cumulativo de alguns sintomas é altamente revelador nesse processo. Um indício de um quadro que pode progredir para o burnout é a fadiga extrema.  Nesse caso, a pessoa começa a se sentir cansada mais frequentemente do que as atividades diárias justificariam. Outro sintoma nesse mesmo sentido é o isolamento de outras pessoas. Na verdade, as pessoas em risco do burnout não encontram energias mentais e nem disposição para manterem associação com outros, pois elas estão utilizando todas as suas reservas para sustentarem a si mesmas. Um terceiro elemento nessa lista é o aumento da impaciência. Ou seja, à medida que a capacidade de realizar as atividades comuns diminui, a impaciência aumenta. Nesse caso, é comum encontrar pessoas esgotadas se irritando com outros sem razão alguma. Além do mais, elas comumente poderão culpar outros ao redor por suas próprias falhas. Em quarto lugar, é comum que alguém próximo ao burnout manifeste algumas limitações físicas e até enfermidades. Nesse caso, dores de cabeça frequentes, baixa imunidade, problemas estomacais e intestinais e outros podem ser comumente percebidos. Por último, há o sintoma da estagnação. No início, essa estagnação ocorre de maneira frequente em casos isolados, com acessos de ira ou frustrações, mas, com o passar do tempo, ela pode se desenvolver em estagnação severa, na qual a pessoa interpreta tudo ao ser redor de maneira negativa.20 Esses indícios podem variar segundo quem analisa o assunto, mas, em geral, esses cinco listados acima são mantidos em comum acordo pelos estudiosos. Uma vez esclarecidos os sintomas, o normal é que se caminhe para a análise das causas. Como o objetivo deste artigo é considerar o burnout entre pastores, serão ponderadas aqui duas causas pessoais, duas relacionais e uma ministerial. A seleção desses fatores atende à frequência com a qual eles aparecem nos estudos sobre esse assunto.21 Muitas vezes a causa do burnout no ministério não possui relação direta com as atividades desempenhadas pelo pastor, mas com sua própria condição física. Embora pregadores geralmente ensinem que o ser humano é uma unidade espiritual e física, na prática eles geralmente negligenciam o bem-estar desse último elemento. É comum encontrar, na cultura pastoral, ministros que dormem muito pouco, se alimentam descuidadamente e vivem vida sedentária. Alguns, em tom de brincadeira, se esquecem da recomendação de Paulo sobre os proveitos da prática da piedade e se lembram apenas da parte do versículo que diz: “o exercício físico para pouco é proveitoso” (1Tm 4.8). Todavia, se o problema fosse causado apenas pela ausência de atividades físicas, talvez a situação não fosse tão grave como se apresenta. Há inúmeros pastores obesos, alguns que se alimentam mal e outros que parecem não se importar com as condições de hipertensão, problemas cardíacos ou alguma outra disfunção da saúde física. O que pode ser tardiamente percebido é que a realidade psicossomática do ser humano faz com que a qualidade do corpo acabe afetando o ânimo e o bem-estar da alma. Dessa maneira, uma das causas do burnout entre pastores pode estar conectada com a maneira como o ministro cuida do seu corpo. Logo, os check-ups médicos regulares podem ser uma excelente maneira de avaliar a atenção que esses obreiros têm dado ao templo do Espírito Santo, do qual eles são mordomos. Se, por um lado, a condição do corpo pode afetar a alma, por outro lado, as enfermidades da alma acabam resultando em consequências danosas para o organismo físico. Por essa razão, outra causa pessoal do burnout entre os pastores pode estar conectada à situação espiritual dos mesmos. Quando um obreiro do evangelho cultiva algum “pecado secreto”, isso produz tamanha aridez que o fardo pode ser insuportável e atinge diretamente o bem-estar físico do mesmo. Por essa razão, na investigação das causas do burnout ninguém pode ignorar os efeitos resultantes de algum pecado pessoal não confessado, especialmente no pastor. O sábio de Provérbios afirma que “tortuoso é o caminho do homem carregado de culpa” (Pv 21.8). Um exemplo desse “caminho tortuoso” é apresentado por Davi no Salmo 32, quando ele diz: “Enquanto calei os meus pecados, envelheceram os meus ossos pelos meus constantes gemidos todo o dia” (Sl 32.3). Em outra ocasião, o mesmo Davi confessa: “Não há parte sã na minha carne por causa da tua indignação; não há saúde nos meus ossos por causa do meu pecado” (Sl 38.3). Novamente aqui, a condição psicossomática do ser humano precisa ser considerada, pois assim como o estado físico afeta a alma, a condição da alma também tem efeitos sobre o corpo. Além do mais, em um interessante estudo com 270 ministros sobre esse assunto, foi encontrado que a aridez espiritual é o indicador primário de exaustão emocional, estresse e burnout entre pastores.22 Por isso, é importante que, em uma anamnese séria, não se ignore o fator espiritual da pessoa, ou seja, a possibilidade de pecado e culpa encobertos. E como acontece em relação a outros assuntos, os pastores também não se encontram isentos nessa questão. Há pastores que se encontram desprovidos de alegria no ministério porque a “alma está cansada”! Muitos fazem o trabalho do Senhor gemendo porque cultivam amarguras que nunca foram tratadas, impurezas que não foram confessadas e abandonadas. Assim, o cansaço profissional começa com a fadiga espiritual! Contudo, não são apenas elementos intra corpus que afetam a saúde do pastor, mas o relacionamento interpessoal dos mesmos. Desse modo, a família e a igreja local devem ser cuidadosamente apreciadas. Em seu livro Quem cuida de quem cuida?, Wadislau Gomes aborda a importância dos relacionamentos eclesiásticos para o ministro da Palavra. Naquela obra, Gomes afirma que “a comunhão com o próximo é reflexo da glória da comunhão com Deus”.23 Relacionamentos domésticos podem ser uma fonte de alegria e júbilo para os pastores, mas também uma causa de estresse e intenso sofrimento. Certamente quando o que nos entristece está tão próximo do nosso coração como acontece com o relacionamento conjugal ou a relação com os filhos, a dor pode se tornar, em determinados momentos, quase insuportável!24 Mas como vivemos em um mundo caído, onde os relacionamentos são quebrados, o ministério pastoral não neutraliza as crises e angústias no círculo doméstico do obreiro. Há pastores cujo casamento parece estar sempre por um fio e nenhum dos cônjuges se interessa em buscar solução para o crescente conflito. Isso se torna evidente pela observação empírica do número de divórcios na cultura pastoral. Também os problemas com filhos são estressantes para qualquer pai, mas especialmente para o pastor. Nessa lógica, as expectativas da igreja, a pressão de ter que ensinar os princípios bíblicos sobre criação de filhos e a sensação de ter falhado como pai podem ser excruciantes! De fato, o peso esmagador dos problemas domésticos pode minar o ânimo do ministro e esgotar sua alegria a ponto de ele se sentir sempre cansado e desqualificado para o ministério da Palavra. Quando não encontra solução para essas dificuldades, o pastor pode sucumbir à fadiga excessiva. Daí a síndrome do burnout! Outra área relacional que pode gerar estresse e desfalecimento ao obreiro diz respeito à igreja local, especialmente sua liderança. É verdade que estudos estatísticos apontam para uma melhora nesse aspecto em algumas regiões mais desenvolvidas. Nos últimos 20 anos, por exemplo, algumas congregações parecem estar cuidando melhor de seus pastores.25 Todavia, algumas expectativas irreais do rebanho continuam sendo fonte de desgaste de alguns ministros. Geralmente a igreja não respeita feriados ou dias de descanso dos pastores. Afinal, essas datas parecem ser ocasiões oportunas para se realizar atividades comunitárias e momentos propícios para as ovelhas ligarem e discutirem assuntos importantes com os seus pastores. No entanto, isso acaba revelando a expectativa de que o ministro deva estar o tempo todo à disposição da igreja. Além do mais, os conflitos entre pastores e outros membros da liderança local já se revelaram tão comuns e traumáticos que se tornaram objeto de estudos acadêmicos de muitos interessados.26 O pior é que devido à natureza carnal de alguns desses embates, não há solução humana que seja fácil para os mesmos! Em suma, aquele que deveria ser visto como um irmão colaborador é tratado como “empregado” pela liderança local e sente seu trabalho cruelmente desvalorizado. Ainda no que diz respeito ao relacionamento entre pastores e membros de congregações locais está a maneira como os obreiros são maltratados financeiramente. A esse respeito, algumas instituições parecem acreditar terem recebido o “chamado divino” para manter seus pastores em uma condição de pobreza e miséria econômica! Com isso, além de explorarem profissionalmente, ainda se recusam a compensar devidamente. Se o pastor reclama, pode ser tachado de agir como “gentio e publicano”, que se preocupa com o dia de amanhã! Nessa relação, ele se mantém refém de uma condição que parece não ter saída. Com o passar do tempo, o cansaço toma conta! Por último, outro fator causador da síndrome do burnout entre ministros é o fato de que muitos no ministério perderam o foco do que, de fato, constitui o chamado pastoral. Há pastores realizando atividades que não deveriam estar na “descrição do cargo”. Por exemplo, há ministros que se orgulham de ser excelentes “construtores de templos” ao longo de sua história ministerial. Mas construção é algo que qualquer mestre-de-obras pode supervisionar e uma boa Junta Diaconal ou Comissão de Construção pode executar. Outros ainda se esmeram no trabalho organizacional da documentação da igreja, da atualização das atas e do cumprimento das decisões tomadas pelo Conselho local. Mas não deveriam essas coisas ser tarefas do secretário do Conselho? Também há pastores que consomem o tempo em atividades políticas da denominação, realizando planos, contatos, conchavos, previsões, estatísticas e inúmeras outras atividades que não estão diretamente ligadas ao ministério da Palavra. Para esses o poder da influência política parece ser a única coisa que ainda faz o coração pulsar de entusiasmo com algo relacionado ao seu desempenho na denominação. Todavia, quando se analisa o exemplo dos apóstolos de Cristo em Atos, percebe-se que eles não acharam razoável abandonar o ministério da Palavra de Deus para executar qualquer outra coisa, ainda que fosse o cuidado das mesas para alimentar as viúvas (cf. At 6.2). Paulo, por sua vez, quando comparou a excelência da pregação, considerou até a ministração do sacramento do batismo como secundária, pois ele disse: “Não me enviou Cristo para batizar, mas para pregar o evangelho” (1Co 1.17). Tudo isso deixa claro que existem atividades primárias e essenciais no ministério que, quando abandonadas em prol de tarefas secundárias, roubam o foco do ministro e resultam em frustração, abatimento e desencorajamento. Paulo ainda lembra que “o que se requer dos despenseiros é que cada um deles seja encontrado fiel” (1Co 4.2), e isso certamente diz respeito à vocação para a qual eles foram chamados. Concluindo, as causas da síndrome do burnout entre pastores são multiformes, pois possuem variadas fontes. Conquanto uma dessas possa ter influência maior em determinados casos, o conjunto precisa, de fato, ser considerado ao se analisar os fatores que podem resultar no desfalecimento do ministro do evangelho. 3. PRESCRIÇÕES TERAPÊUTICAS Tendo sido analisados os estudos estatísticos e as prováveis causas, é mister apontar alguns elementos prescritivos para aqueles que desejam evitar ou se livrar do quadro clínico com burnout. Como a natureza deste artigo não contempla a ciência médica nem os conhecimentos farmacológicos, as recomendações aqui não incluirão o uso de medicamentos apropriados. Somente um profissional da área médica estaria habilitado para orientações nesse sentido. Portanto, o que compete a este artigo é listar outros fatores terapêuticos e indicar que um profissional sério da área médica seja consultado para a obtenção de produtos com a finalidade de se chegar ao tratamento necessário de acordo com a síndrome em questão. Antes, porém, de listar sugestões e orientações terapêuticas comuns àqueles que lutam em prol da manutenção da vitalidade na lida ministerial, é fundamental que os pastores se disponham a “pedir ajuda”. Isso parece ser extremamente difícil, pois admitir a vulnerabilidade pessoal pode ser acompanhada de vergonha, sentimento de frustração e exposição a julgamentos de terceiros. Quando um pastor pede ajuda ele tem a sensação de estar desnudo! Fazer isso diante do Senhor é mais fácil, mas diante dos olhos de outros? Realmente isso abala a honra de qualquer indivíduo. Para muitos, o só pensar nesse processo é suficiente para eliminar tal atitude da lista de possibilidades. Todavia, o desgaste e o burnout são a falência da resistência pessoal e o orgulho acaba sendo um dos maiores obstáculos para a melhora do quadro. A esse respeito, o Dr. Midgley comenta: Algumas vezes podemos sentir estar em meio a uma neblina tão densa que precisamos da ajuda de alguém “de fora” para nos ajudar . . . Encontrar alguém que possa pregar as verdades do evangelho à nossa situação será um benefício enorme; também, poderemos ainda ter que buscar, junto ao aconselhamento, ajuda de algum profissional secular, bem como medicação.27 Além do mais, todo pastor que deseja ser bíblico em seu comportamento, deverá se lembrar que o apóstolo Paulo não se sentia envergonhado de pedir ajuda para suas necessidades. Várias vezes ele escreveu a diferentes igrejas dizendo: “Irmãos, orai por nós” (cf. 1Ts 5.25; 1Co 1.10-11; Ef 6.19-20 e Cl 4.3). Dessa maneira, se o obreiro em necessidade quiser manter a aparência de alguém totalmente competente e em completo controle sobre suas fragilidades, ele nunca pedirá ajuda. No entanto, se ele quiser ser visto como humano, carente da graça de Deus e dos instrumentos que o Senhor dispôs em seu corpo, a Igreja, para socorrê-lo em momentos de carência, ele pedirá ajuda! Com respeito às prescrições terapêuticas, considerando que os pastores estão frequentemente alimentando outras pessoas espiritualmente, é comum que muitos acabem negligenciando o seu próprio desenvolvimento espiritual. Essa “familiaridade com o sagrado” faz com que os pastores procurem nutrição na Palavra para as suas ovelhas, mas se esqueçam de alimentar a si mesmos.28 Porém, ao caírem nessa armadilha, aumentam a possibilidade do esgotamento, pois desprezam (ainda que inconscientemente) a fonte essencial de vitalidade que os impulsionou a considerar o ministério da Palavra e é poderosa para sustentá-los nessa mesma obra. A esse respeito, é condição sine qua non que o pastor não abandone suas práticas devocionais. O poder do Deus que vivifica os mortos (Rm 4.17) é primeiramente experimentado em contato com a Palavra vivificadora, por meio da leitura e meditação da mesma. O salmista confessa sobre esse assunto: “O que me consola na minha angústia é isto: que a tua palavra me vivifica” (Sl 119.50). Também, lembrando a exortação clássica do puritano Richard Baxter, é, pois, “necessário considerar o que devemos ser e o que devemos fazer por nossas almas, antes de considerar o que deve ser feito pelos outros”.29 Portanto, a primeira prescrição na luta contra o burnout diz respeito à prática diária e sistemática do cultivo da piedade e da comunhão com Deus. Não há nada mais cansativo e estressante do que tentar exercer o ministério meramente na força da carne!30 A segunda prescrição terapêutica para pastores contra o burnout é o simples fato de levarem suas limitações a sério. Eis aqui um axioma a ser ponderado por qualquer profissional: ninguém levará a sério suas limitações se você mesmo não o faz! O bem-estar emocional e físico implica no fato de o indivíduo conhecer a si mesmo e reconhecer que sua estrutura é pó (cf. Gn 2.7; Sl 90.3 e 103.14). Em outras palavras, cada ser humano é limitado!  Na cultura pastoral é comum encontrar alguns que se orgulham de trabalhar demasiadamente, quase não descansarem, se alimentarem mal e não praticarem qualquer atividade física. Todavia, antes que motivo de orgulho, isso deveria ser razão para vergonha, pois esses obreiros vivem de modo contrário ao que leem na própria Bíblia. Os pastores deveriam considerar a exortação de Brian Croft de que dormir faz bem à alma.31 A necessidade do sono, segundo Christopher Ash, é “uma marca fundamental de nossa mortalidade”.32 Além do mais, até o Verbo encarnado necessitou dormir (cf. Mc 4.38). Também é necessário que o pastor reserve tempo apropriado para o seu descanso e suas férias. Biblicamente falando, isso não é uma alternativa, mas um mandamento (cf. Ex 20.8-11 e Dt 5.12-15). Diferentemente do que a cultura popular diz, o tempo não é elástico e não é “a gente que o faz”. O tempo é um dom divino que não pode ser diminuído nem acrescido e, se o pastor não possui noção de suas limitações, acabará se encarregando de mais coisas do que tem tempo para realizar. Isso gera frustrações, cobranças e desgaste. Ainda quanto à natureza físico-material do indivíduo, é importante que o pastor exerça alguma atividade física regularmente. Essa prática melhora a circulação sanguínea e fortalece o sistema imunológico, bem como aumenta o metabolismo, ajuda na diminuição do risco de doenças cardíacas e fortalece os ossos e a musculatura. Porém, a atividade física ainda faz com que a pessoa “desligue” das preocupações profissionais enquanto a realiza. Esse benefício terapêutico é extremamente útil na luta contra o estresse, o desgaste e o burnout. Os pastores certamente teriam proveito se corrigissem suas cosmovisões quanto à importância do exercício físico. Outra prescrição terapêutica na luta contra o burnout é a descentralização ministerial. Há pastores que centralizam todas as atividades da igreja em si mesmos. Delegar parece ser uma dificuldade comum, especialmente entre os pastores. Em uma de suas pesquisas sobre o assunto, Thom Rainer identificou 12 razões pelas quais isso ocorre tão frequentemente, mas somente quatro serão mencionadas neste artigo. Primeiro, há o fato de que alguns líderes anexam seus valores às suas realizações. Com isso, se as atividades ministeriais são feitas com excelência, o pastor se sente indispensável e valorizado. O problema é que a manutenção desse sentimento acaba cobrando um preço elevadíssimo: a saúde do pastor que tenta realizar mais do que consegue. Ainda quanto à dificuldade de delegar, há alguns pastores que se vêm tão consumidos na realização de suas tarefas que acreditam não poder dispensar tempo para treinar outras pessoas. Na verdade, capacitar pessoas para executar tarefas corretamente consome muito tempo e energia, e é até arriscado, pois não possui garantias de que a pessoa irá se aplicar. Todavia, há também benefícios nesse projeto! Além do mais, os pastores foram vocacionados para treinar outros a desenvolverem seus dons corretamente em prol da saúde do Corpo de Cristo (cf. Ef 4.8s e 1Co 12). Em terceiro lugar, há o fato de que o ser humano, em geral, gosta de controle e se sente seguro quando o possui. Qualquer coisa que foge ao controle acaba gerando ansiedade, estresse e perturbação. Por essa razão, alguns que estão no ministério preferem não delegar. Mas talvez a razão principal para a falta de delegação entre pastores seja a “autoidolatria”. A esse respeito, parece não haver palavra melhor para descrever o sentimento de gostar de se sentir útil e necessitado ou de ter medo de que outra pessoa possa fazer o trabalho melhor e depois receba os elogios da congregação.33 Em suma, a descentralização ministerial, ainda que penosa, é uma necessidade para quem deseja se livrar do risco do burnout. A quarta prescrição em prol da sanidade do ministro diz respeito ao cultivo de verdadeiras amizades. Há uma máxima popular que diz que o pastorado é solitário, assim como todo cargo de liderança, mas a verdade é que não precisa ser assim. O ensino bíblico de que Deus criou o ser humano à sua imagem deveria ser o fundamento para nenhum cristão se contentar com o isolamento e a solidão. Deus vive eternamente em perfeita comunhão e amizade entre as pessoas da Trindade e, ao criar o ser humano à sua imagem, ele o fez um ser social e com necessidades relacionais. Nesse sentido, o homem carece do relacionamento com Deus, mas também com o seu próximo, alguém que lhe seja idôneo, e por isso Deus criou a mulher (Gn 2.18-25). O ser humano necessita do cultivo de amizades para viver de maneira saudável sobre a terra. A história bíblica está repleta de exemplos de pessoas que desenvolveram relacionamentos amigáveis como meios de encorajarem uns aos outros e permanecerem vigorosos no serviço do Senhor. O que dizer de Moisés e Josué, Elias e Eliseu, Daniel e seus amigos, Paulo e Silas, Timóteo e Tito? Um dos exemplos mais alentadores encontrados na Bíblia é a descrição da amizade entre Davi e Jônatas. Em uma ocasião na qual Davi estava desalentado, Jônatas saiu ao seu encontro e “lhe fortaleceu a confiança em Deus” (1Sm 23.16). Amizades preciosas podem, de fato, ser valiosos tesouros em tempos de abatimento. Como afirma o sábio de Provérbios, “como o óleo e o perfume alegram o coração, assim, o amigo encontra doçura no conselho cordial” (Pv 27.9). Ainda quanto a esse assunto, deveria ser considerada a importância da amizade do pastor com sua esposa. Ambos foram unidos por Deus para se fortalecerem mutuamente e a amizade conjugal pode ser grande fonte de bênção em prol da condição saudável no ministério. Essa amizade, diferente de qualquer outra, possui o benefício da união íntima, a qual, segundo o apóstolo Paulo, é instrumento de Deus contra as ciladas do inimigo (cf. 1Co 7.1-6). Portanto, nenhum obreiro deveria ignorar o cultivo da amizade com sua amiga da mocidade (cf. Pv 2.17). Por último, o pastor que deseja se manter livre da síndrome de burnout deve discernir corretamente entre sacrifício e esgotamento. Quando são lidas algumas palavras de Jesus nos evangelhos é possível ter a compreensão de que o Senhor exige, dos seus seguidores, o completo esgotamento, ou seja, o verdadeiro burnout. Por exemplo, em Lucas 9.23-24 se lê: “Se alguém quer vir após mim, a si mesmo se negue, dia a dia tome a sua cruz e siga-me. Pois quem quiser salvar a sua vida perdê-la-á; quem perder a vida por minha causa, esse a salvará”. Outrossim, Paulo exortou os crentes a que se apresentassem a Deus “por sacrifício vivo” (Rm 12.1). A resposta imediata a essas palavras pode ser a disposição de se deixar consumir no serviço do Senhor. A esse respeito, duas coisas básicas precisam ser consideradas. Primeiro, quando alguém se deixa consumir, ele nunca o faz sozinho, mas acaba compartilhando os efeitos da sua atitude com outras pessoas, quer seja a esposa, os filhos ou a própria igreja local.34 Em segundo lugar, há uma diferença entre o sacrifício verdadeiro e o burnout desnecessário. O sacrifício a Deus é algo exigido pelo Evangelho e por aquele que se entregou em prol do seu povo; o desgaste desnecessário é como um autoflagelo. Nesse sentido, o dano causado a si mesmo não possui benefício algum e também mutila a alegria e saúde de outros ao redor. Ademais, essa atitude resulta em completa insegurança de outros quanto à sanidade de quem a pratica. O sacrifício vivo é precioso aos olhos do Senhor, mas o mesmo Deus sustenta e capacita os seus servos para essa devoção. Cristãos perseguidos ao redor do mundo experimentam essa realidade de maneira mais radical do que muitos pastores contemporâneos poderiam imaginar. Todavia, o desgaste desnecessário, o burnout causado pela imprudência pessoal, não resulta em nenhum serviço de louvor a Deus! Em resumo, há várias coisas a serem feitas por quem luta contra o burnout. Nenhum ministro do Evangelho precisa sucumbir nessa batalha! Além das prescrições terapêuticas acima, é possível listar inúmeras sugestões práticas: manter um hobby pessoal, pedir que outra pessoa ajude no controle da agenda, montar um programa de prevenção junto com outros membros da liderança e assim por diante. Além do mais, pastores que passaram recentemente por essa experiência têm sido amorosos em compartilhar seus casos em publicações de teologia pastoral, a fim de ajudar outros colegas de ministério.

CONCLUSÃO
Estudos evidenciam que os pastores se encontram no grupo de risco da Síndrome do Burnout e isso está intimamente conectado à natureza e às exigências do ministério pastoral. Todavia, a melhor maneira de prevenir esse fenômeno não é a ignorância e nem a negação da realidade, mas o conhecimento de suas causas e a mudança de comportamento que pode resultar em um processo terapeuticamente saudável para os obreiros do Reino. Finalmente, é importante lembrar que o burnout não é a pior coisa que pode acontecer a um pastor, pois Deus, em sua sabedoria e graça, pode usar essa calamidade para ajudar seus servos a corrigirem erros processuais no exercício do ministério.

VALDECI SANTOS, O PASTOR E A SÍNDROME DE BURNOUT: UMA ABORDAGEM TEOLÓGICA-PASTORAL


CORONEL JOÃO DOURADO (1854-1927)

Alderi Souza de Matos João da Silva Dourado nasceu em Caetité, sul da Bahia, no dia 7 de janeiro de 1854. Era filho de João José da Silva Do...