segunda-feira, 15 de abril de 2019

Eu também sou irmão de Maria

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Uma consideração sobre Lucas 4.38-42

Minha conversão se deu em plena adolescência, pouco antes de completar 16 anos. Época em que ainda exibia a onipotência da juventude, aquela confiança de que tudo é possível e que podemos fazer diferente de todos. Mas esse é outro assunto, nessa ocasião quero tratar sobre Marta. Meu contato com as histórias bíblicas se deu a partir dessa época. Lembro-me quão perplexo ficava ao conhecer histórias que revelavam o caráter de Jesus, e como tudo fazia mais sentido. No entanto, as histórias inevitavelmente vieram acompanhadas das interpretações clássicas dessas passagens, algumas corretíssimas, outras nem tanto. Esse é o caso da pequena história sobre Marta e Maria, descrita em Lucas 10.38-42. Cresci o pouco que me faltava crescer já que tinha 16 anos, vendo Marta como exemplo negativo de materialismo, uma vez que não dava muito valor aos ensinos espirituais do Senhor, ou de perda de prioridades. É verdade que eu mesmo devo ter exposto essa passagem sob tal prisma, e ensinado pessoas a restabelecerem sua espiritualidade no sentido oposto do exemplo de Marta. Portanto, o que escrevo aqui não é uma crítica a pregadores, mas uma débil tentativa de resgatar o verdadeiro sentido dessa passagem, inclusive para mim.

Para se compreender essa e outras passagens bíblicas devemos observar o contexto. Fica claro que Lucas não segue uma ordem cronológica para descrever os acontecimentos. Se considerarmos que Marta, Maria e Lázaro residiam em Betânia e que Jesus descia para Jerusalém, seria de se esperar que esta narrativa estivesse pelo menos próxima da entrada triunfal (cap. 19), talvez após sua entrada, seguindo as narrativas paralelas de Marcos e Mateus (cf. Mc.11.15ss e Mt 21.17). Mas se Lucas não segue uma ordem cronológica dos acontecimentos, que ordem seguiria, ou melhor que intenção teria tido ao transferir essa passagem para esse contexto? Trata-se de uma longa sessão que tem como pano de fundo o farisaísmo. A parábola do Bom Samaritano, A oração do Senhor, A blasfêmia dos fariseus, o Sinal de Jonas, entre outras, comprovam que o que está em foco é a divergência havida entre o cristianismo e o farisaísmo. Isso nos leva a perguntar, como a história de Marta e Maria se encaixam nesse contexto?

Creio que a definição do que seria a “boa parte” referida por Jesus também é crucial para entendermos a história. Ora, não penso que “melhor parte” seja a escolha do ensino em detrimento do trabalho, nem da espiritualidade em desfavor do serviço. O que está em cena não é o contraste de prioridades, mas a perspectiva judaica frente ao ensino de Jesus. Ou se puder ser mais explicito o farisaísmo versus o evangelho. Sendo assim, ouso afirmar que a melhor parte é o evangelho, e que Marta ainda cogita ou vê a pessoa de Jesus dentro do escopo da cultura farisaica. E essa é a razão porque Lucas narra o incidente. De um lado temos a atitude previsível e submetida à sua cultura de Marta, e do outro a ousada atitude de sua irmã Maria. 

Maria transgrediu a sua tradição quando se “quedou” aos pés de Jesus. Primeiro, porque tal atitude seria considerada desonrosa para uma mulher. É de se imaginar que Maria se assentava em uma roda masculina composta, no mínimo de Jesus, seus discípulos e Lázaro seu irmão. Em segundo lugar, Maria também se omitiu da realização das tarefas domésticas próprias da tão recomenda de hospitalidade legal. A reação de Marta é o tipo, ou exemplo se preferir, da atitude farisaica. Nas palavras e queixas de Marta temos vazada toda a atitude dos fariseus diante da contravenção aos seus costumes e tradições.

“Marta agitava-se... ocupada...” As palavras mais do que descrever uma determinada circunstância, descreve um estado emocional (“...andas inquieta e te preocupas...”). Marta está aflita e ansiosa por cumprir uma série de trabalhos que atendem à sua tradição. Suas palavras dirigidas a Jesus, “não te importas” vem carregada de reprimenda como os discípulos um dia também o fizeram (Mc. 4.38). E como os fariseus repetidamente confrontaram Jesus frente aos aspectos mais variados de suas tradições, Marta o fez. Dessa forma ela resolveu, à luz de sua cultura e tradição qual deveriam ser a atitude de sua irmã e maneira pela qual Jesus deveria ser servido, e como ele deveria agir em relação à Maria. Daí a resposta amorosa de Jesus para essa mulher crente e fiel: “uma cousa só...” . A mensagem central do Evangelho, basta Jesus, e somente ele. Toda a tradição pode ser relegada a segundo plano em favor da melhor parte, o evangelho de nosso Senhor Jesus Cristo.

E esse é meu ponto, Marta é vitima do erro que cometeu. Hoje vejo o juízo que fazemos sobre a espiritualidade de Marta, sob o crivo de nossas tradições evangélicas. Criticamos a ausência em escolas dominicais e cultos, utilizando o exemplo de Marta como uma mulher que trocou o ensino pelo trabalho, o “quedar-se” pelo “agitar-se”, ou seja, julgamos a espiritualidade de Marta sob crivo de nossa tradição. O que devo aprender com Marta? Não é restabelecer as minhas prioridades, mas não julgar a espiritualidade das pessoas pelas minhas tradições e cultura, porque uma cousa só é necessária: Jesus. E ao me deparar com essa verdade, percebo quão fariseu eu ainda sou, ao julgar a vida espiritual dos outros baseado em meus conceitos. E vejo assim, que eu também sou irmão de Maria. Pois ainda julgo Martas e Marias. Que Deus me ajude!

Rev Joer Correia Batista.

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